quinta-feira, 25 de abril de 2024

Podia chamar lhe liberdade

 


Nao, isto não é um exercício de escrita. É uma negociação com aquilo que tolhe a vida de uma pessoa.
Um medo por dia. Propôs-se escrever um medo por dia, descreve-lo, negociar com ele, apazigua-lo, faze-lo seu aliado. Claro que para isso precisaria de aprender a sua linguagem,  decifrar as suas manhas, reconhecer os seus disfarces, a forma como incorporava nela mascarado de protecção. Sentir-lhe o cheiro.
Já sentiu o cheiro do medo? Ela já.  Aquele fedor putrefacto a morte.
E um dia vem como conforto, o ninho onde se recolhe, onde nem a si mesma encara.
E um dia vem como o certo, o permanente, o não vá o diabo tecê-las, e fica naquele tédio morno sem ondas, sem riscos, sem sal.
E um dia vem como saúde e há que salvaguardá-la, e não esforça o coração,  e não sobrecarrega a visicula, tem cautela com os intestinos,  tem cuidado com as tensões,  e fica a canjas e peixe cozido.
E um dia vem como serenidade,  e recusa a paixão,  desacredita do amor, recusa os turbilhões.

O que lhe quero dizer, forasteiro, é que tenho perdido muitos pores de sol. 




terça-feira, 23 de abril de 2024

Contágio

 




O homem distanciava-se, curvado sobre a cadeira de rodas em que empurrava o companheiro. Partilhavam o mesmo sorriso ténue e aquele brilho no olhar. O que empurrava, grato pela oportunidade de poder fazer a vida de alguém melhor, o que era empurrado grato por ter a humildade de aceitar. Posso dizer que enquanto passavam transbordavam a Alegria que dura, e só por os ver passar, o ar ficava mais límpido, as pessoas mais leves, as aves pousavam e o vento brindava com um sopro manso. Reconheciam o verdadeiro valor de se Ser. E contagiavam, só por passarem.




sábado, 30 de março de 2024

Paredes

 



Conto-lhe, forasteiro, descobri em mim jeito para espetar pregos nas paredes. Anos a poupá-las à minha desaptidão e tendência para escavacar, fui encontrá-las rachadas na mesma, pelo tempo, pelo desgaste. E sabe que elas se riram de mim?... gargalharam até... poupei-as privando-me de quadros, e elas a desenharem rasgos no desaparecer dos dias.

Agora, é só ver-me de martelo numa mão e pregos na outra.





segunda-feira, 11 de março de 2024

Lembrete

 


Que eu não envelheça amargurada com a vida e com o meu corpo

Que recorde com carinho a agilidade da juventude e que aprecie com gratidão tudo o que o corpo me permite para sentir a vida

Que a capacidade de sonhar nunca morra e que não me falte a vontade de alcançar os sonhos

Que a curiosidade me acompanhe sempre 

Que nunca me coloque limites nem me guie por formatações alheias 

Que o meu ritmo seja sempre definido por mim mesma em perfeita concordância com o meu corpo e o meu sentir 

Que nunca me afaste dos anseios da minha alma por os considerar despropositados em relação à minha idade 

Que as curvas do meu corpo sejam sempre trajectória de carinho e sensualidade 

Que as pregas da minha pele sejam mapa de histórias passadas e destinos por vir

Que eu nunca deixe de fazer seja o que for por poder parecer ridículo aos olhos dos outros 

Que no meu rosto haja sempre brilho nos olhos e sorriso nos lábios, para mim e para os outros 

Que eu me cumpra em todas as circunstâncias da vida a que a minha alma se propôs 

E que eu cresça e supere as minhas inércias e desleixos, todos os dias 





quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Tona

 



Quando peguei no telemóvel velho, bloqueado há tanto tempo, e que naquele momento resolveu tornar-se outra vez acessível,  abri o bloco de notas e encontrei outra eu do passado. Os escritos, os relatos, os apontamentos, a inspiração...

Parece-me que esta que hoje lhe escreve, forasteiro, foi sugada por uma qualquer tecnologia invisível e parte dela tenta desesperadamente vir à tona.





quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Foto

 



Foi quando viu a foto que a mulher mais nova lhe enviou, com o bule, a pequeníssima árvore de natal e o guarda jóias replecto de bugigangas, que percebeu que apesar de todas as probabilidades de agravamento de acontecimentos que embobrecem a raça humana, os pequenos e insignificantes pormenores, as minudencias (diria Mr. X) do dia a dia, podem transformar e trazer calor à vida.

Poderia até dizer que uma jarra solitária, com uma flor, teimosamente em cima de uma mesa, talvez possa mudar o mundo, para melhor, por contágio, como aquele vírus, escapado não se sabe de onde, que também mudou o mundo, para pior, segundo dizem.




terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Acerto

 



Andou o dia todo a remoer - que sobrava tudo para ela, quem lhe iria fazer o trabalho, que o cansaço estava no limite, que não havia tempo para aquilo, que teria mesmo assim de ser ela a fazer. E fez. E quando fez, percebeu que tinha salvo o dia de outra mulher, uma mulher mais frágil, mais no limite 

Então,  chegou a casa, depois de tudo o que tinha remoido, retomou o trabalho,  e deu graças. Graças porque tudo se acerta, graças porque o amor escreve por linhas tortas, graças porque entendeu.




sábado, 16 de dezembro de 2023

Engano

 



Foi por engano que a mulher fez o telefonema para aquela com quem se tinha desentendido. Não era suposto o número constar da sua lista telefónica. Foi devido ao engano que a outra se abraçou àquela ligação e foi pelo engano que pode ensaiar uma ponte. Se não fosse o engano, continuaria aquele fosso cheio de palavras caladas, e graças ao engano pelo menos conseguiu fazer-se ouvida.

Daqui, esta que lhe escreve, forasteiro, e que assistiu ao engano, sorri. A vida é tão descarada, por vezes.




sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

celebração

 




uma vontade secreta de celebrar inquieta-lhe o peito. abre uma lata de sardinhas, aquece um pão congelado, abre uma cerveja. em frente está o menino jesus iluminado e aquecido por uma pequena vela. a árvore de natal alterna as cores que brilham, à vez, calmamente. o seu altar está apagado, mas ao pousar o olhar em cada imagem, em cada significado, em cada ancoragem, dá-lhe luz.

saboreia lentamente o repasto que se ofereceu, levanta a caneca onde borbulha a bebida gelada demais para o frio que faz, e agradece, agradece sem saber bem o quê, mas uma cura se faz algures, em alguém que não conhece, de forma surpreendente.






quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Passos

 



Um pé após o outro, um passo e de seguida outro, a pequena alameda pela frente, a insegurança por dentro, o caminhar seguro por fora, a oração murmurada, as pequenas vitórias íntimas. 

A mulher já perdeu a conta às vezes em que recomeçou na vida. Um pé após o outro... a oração... a vitória imperceptível...