domingo, 9 de julho de 2017

fartinha









sabe? e escrevo-lhe isto aqui enquanto lhe escrevo outras coisas ali noutra janela onde não é suposto que eu lhe escreva isto que escrevo aqui, mas sabe, às vezes queria dar-me o direito de ser humana, apenas humana. humana de raça, um animal assim desta espécie, toda eu terra, toda eu carne, toda eu apelo, toda eu urgência, toda eu exigência. e dar-me o direito de estar cansada, e se preciso, chorar de exaustão e recusar-me a mais, como uma criança que faz birra e espolinha-se no chão chorando e babando. não quero mais. e exigir liberdade, alimento, prazer. lutar por isso até ao limite. chegar lá e dizer - este homem é meu! eu cheguei primeiro! e esgadanhar-me toda, como uma fêmea luta pelo seu macho, ou o contrário, sei lá, mas lutar, sangrar, romper, gritar. e nem querer saber se ele me quer, não interessa. eu quero, é meu, cheguei primeiro. e, quando morta de cansaço, repousar, dormir.
há dias em que quero deixar de ser esta que dá de comer aos pardais e ficar com a aveia toda só para mim e correr para a varanda a enxotá-los, pois afinal de contas eles apenas sujam tudo e se não comerem aqui irão comer a outro lado qualquer. queria deixar de ser esta a compreender e a aceitar sempre todos, deixar de ver o que não se vê, e garantir que uma árvore é apenas aquela coisa ali em frente que cresce porque tem terra e água e que os animais existem para que nos alimentemos. queria ser a que defende que o mundo é uma coincidência de circunstâncias e azar tiveram os que nasceram num país desgraçado, temos pena mas não temos culpa e temos é que levar a nossa vidinha da melhor forma e os outros que se cuidem, cada um que trate da sua, sabe? às vezes queria deixar de ser esta espécie de louca que fala com a lua e com o sol e escuta a voz do vento e de olhos fechados, chega aí com o coração nas mãos. queria deixar de ser isso tudo e ser apenas tacto e saliva, corpo.
sabe? às vezes canso-me de ser esta que aceita. fartinha de tudo mesmo, de tudo. 











8 comentários:

  1. Ana,
    Creio comoreender o que sentes. Mas essa não és tu. E às vezes custa-nos aceitar quem somos porque o nosso caminho tem pedras e montanha duras de ultrapassar. Mas a tua essência e essa e não podes fugir dela.
    Toma lá um abraço apertadinho de quem crê compreender o que sentes.

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    1. Essa também sou eu. Aí uns sete e meio por cento.
      Abraço apertado, Ana :)

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  2. "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..."

    [Eu gosto muito de ti assim, mas é preciso manter o equilíbrio.]

    Um beijinho, querida ana

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    1. De vez em quando é preciso arejar os demonios, trazê -los à rua, tomar café com eles, mimá-los. E perdem a força, por algum tempo.
      Também te quero muito bem, Miss :)
      Beijinho e bom domingo

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  3. ao contrário das duas belas pessoas que comentaram antes de mim, tenho a dizer-te que sim, tens toda a razão, pois que, quando não escrevemos/dizemos exactamente isso que escreveste, estamos a envenenar-nos, não os outros.

    há um momento para exigir, reclamar em todas as direcções, pontapear no ar, rugir bem alto.

    sem este estado, que sucede a tempos, bem podemos tornar-nos bivalves, mas arriscamos a pena máxima (que nos inflingimos a nós próprios): sermos cozinhados em fogo lento...

    como te compreendo... :)

    _______
    ruge, ana, ruge!

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    1. :) é como quem espreme uma espinha no nariz... dói, sai a porcaria, sangra e alivia :)

      grrrr.... alex

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  4. Estou com a Alex: às vezes é preciso dar um grito!
    ~CC~

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